Eu já tive um patrão
que me chamou de ladrão
da fortuna que não vejo
nem no teto nem no chão
um dia fui procurá-la
a casa daquele patrão
mas ele não estava em casa
que por roubar está na prisão
terça-feira, outubro 25, 2011
quarta-feira, junho 29, 2011
SÓ A MINHA MÃE CHOROU POR MIM!
Este livro é dicado aos combatentes tombados nas chamadas guerras ultramarinas, Goa, Damão, Diu, Angola, Moçambique, Timor Leste, Cabo verde, Guiné-Bissau e Portugal. Estas guerras, que retiraram a vida a mais de 10.000 Jovens portugueses e a mais de 200.000 crianças, homens e mulheres inocentes daquelas regiões da África e da Ásia. Deste último número não há dados exactos, mas muitos ex-combatentes apontam para tamanha barbárie, havendo outros que apontam para muito mais. Além destes, houve mais de 100.000 mutilados e stressados só portugueses. Admitindo-se que mais de 500.000 tenham existido espalhados por todas as colónias. Lembram, soldados que combateram naquelas colónias que este último número pode estar muito aquém da realidade. Pois muitos dos que por lá passaram admitem ter havido muitas mais vítimas. Este romance a todos vai ser dedicado. IRÁ RELATAR AQUILO QUE O SISTEMA POLÍTICO DA ALTURA ESCONDIA E, ATÉ AOS NOSSOS DIAS, 50 ANOS MAIS TARDE, OS RESPONSÁVEIS PELO PAÍS TEIMAM EM ESCONDER. NAQUELAS GUERRAS TODOS OS INOCENTES PERDERAM. APENAS OS RESPONSÁVEIS PELO PODER E SEUS DEFENSORES GANHARAM PELA PRÁTICA DOS SEUS PRÓPRIOS CRIMES. ESTAS GUERRAS E CRIMES TIVERAM O SEU INÍCIO EM PRINCIPIOS DE 1961. PARA FINALIZAREM EM 1974, ANO DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS EM PORTUGAL. Tinha um futuro como jamais pensara. Estava numa casa desconhecida, entre pessoas desconhecidas e numa terra desconhecida. Os poucos haveres, que transportava, espalhados pelo quarto, mais desconhecido o tornava. Mas, no entanto, tudo o que desejava poderia estar ali bem perto de si. Não que fosse aquele local uma suíte de algum hotel dos mais luxuosos: era apenas uma divisão de tamanho normal, convenientemente asseada, com uma cómoda e um móvel de acaju, cuja pia de pedra e jarro eram ornados de cravos vermelhos, uma escrivaninha com o Mapa do Mundo, uma imagem da Torre Eiffel e outra do presidente da República.
Saul estava feliz por ter acordado cedo. Tinha tempo para manter-se acordado e alinhar o raciocínio, que lhe parecia como que um bugalho por tal forma oco que não voltaria a reconstruir o primitivo conteúdo. O tema daquele conteúdo havia sido a sua vida em Lamego, na companhia daquela que fora a sua brilhante ainda que inconsequente mãe, uma professora que passava a vida a conflituar com os alunos, quer por se preocuparem muito com as aulas, quer muito pouco. Só com eficiência e ponderação era capaz de aceitar alguma coisa. O Saul confundia-a com a sua alegria ou profunda tristeza. O pai morrera quando ele era criança, e não houvera, pois, na vida de Saul, outra influência que tivesse contrariado tais reveses. Acabara por ter um ar assustado, quando os olhos não assumiam uma expressão imaginosa. Os olhos eram verdes, e o cabelo tão forte que se mantinha fixo durante todo o dia teimosamente, embora tivesse um agradável e queda natural. A mãe fora sempre admiradora da beleza dele, a ponto de considerar detestável só a ideia de Saul ter de abandoná-la para ganhar a vida. Particularmente, havia muito de orgulho pessoal nessa atitude. Nem ela nem Saul tinham tido noção clara do seu definhamento físico, até que já era tarde para salvá-la. E eis que morrera.
Descansando agora numa outra cama, metido entre lençóis, Saul rodou a cabeça no travesseiro, sempre com a lembrança perturbadora daquelas terríveis últimas semanas na companhia da mãe. O dinheiro da reforma dela mantivera-os durante a doença, nada mais. Saul recordava-se de como ela utilizava o dinheiro. Ao fim, quase que o gastava apenas em tabaco e bebida. Estes acontecimentos apareciam-lhe para serem lembrados, saltavam-lhe à memória; Saul porém não queria recordá-los. E que, agora, nesta manhã de Verão, necessitava de domínio, ter segurança para recomeçar uma nova vida, que lhe surgia como um Mundo desconhecido sobre o qual, sem quaisquer outros recursos e sem conhecimentos prévios, teria de enfrentar.
Saul desejara ser Veterinário, mas ter-se-ia dedicado a qualquer outro meio de ganhar a vida, pudesse ter ele aprendido outra coisa; mas, para um homem de vinte e cinco anos, na década de setenta do século vinte, havia poucas hipóteses. E o único trabalho a que se sentia com alguma capacidade, tendo em mente o desconhecimento e a falta de experiência, era tratar de animais. O facto de lhe faltar conhecimentos para lidar com animais não o preocupava. Supunha-os bravos, selvagens, a quem encheria de calmantes extraídos de livros de estudo e visitas a jardins zoológicos. Havia de pô-los bem domesticados e fazer deles bons animais. O importante havia sido arranjar trabalho. Garantido este, pôr-se-ia à altura. O problema era arranjar trabalho ou morreria à fome. Na miséria.
Tentara em várias fazendas e cooperativas agrícolas, mas as tentativas não haviam dado qualquer resultado. Não tinha o aspecto, os modos, a voz, que o tornassem desejável para tratador de animais. Era encantador, alto, elegante e bonito, de pele morena, mas tão delicada que parecia nunca ter sido roçada por ventos ásperos ou queimada pelo calor africano. Mas o pior de tudo era o sorriso. Iluminava-lhe o rosto da mais extraordinária maneira, e a boca, que tivera um recorte pensativo, quase melancólico, tornava-se atraente, viva estimulante. Parecia uma criatura perigosa dentro de uma casa onde houvesse uma filha já mulher até uma esposa.
Se Saul ao menos tivesse consciência de tal, disfarçaria o sorriso, substituindo-o por outro mais adequado, mas nunca ninguém lhe chamara à atenção, e, antes de terminada a entrevista, já Saul o exibira... e perdera a oportunidade. Não tinha uma daquelas caras em que os donos das grandes quintas ou herdades de então procuravam num tratador de animais ou Veterinário.
- Desculpe-me, se esperou muito tempo. Eu tinha assuntos a tratar. Se bem entendo, é...
Hesitou, suspensa na figura encantadora de Saul. «Evidentemente que este jovem, tão atraente como qualquer outro transeunte das grandes capitais do mundo, não vinha propor-se para tratador de animais. Era Veterinário, no mínimo!», interiorizou ela.
- Sim - respondeu Saul, com voz tremente. - Eu estou na disposição... Eu preciso muito... Eu chamo-me Saul Sandman.
- Ah, sim, senhor doutor Sandman. Não quer fazer o favor de sentar-se? - E hesitou mais uma vez, até que se sentou numa cadeira estofada de pele preta, mesmo ao lado dela. «Tinha uma presença que inspirava confiança. Era a delicadeza em pessoa», pensou Saul.
- Julgo que reparou que se lhe exige que, no caso de ser aceite, vá para o Alentejo. Saul não sabia, mas fingiu saber.
- Sim, sim. Eu...bem, eu gosto muito de ir para o Alentejo.
- E posso saber por que motivo?
- Quero sair de Lamego. Minha mãe morreu há semanas. Não tenho ninguém! Gostava de ir para outra zona do País.
- E sente-se capaz de tratar e manter em boa saúde milhares de animais de uma das maiores herdades daquela Região, aliás, do País?
- Oh! Sinto que sou! Adoro lidar com animais.
- Bom! Mas são animais muito diversos. Desde touros bravos, ovelhas, porcos de pata preta e cavalos Lusitanos. Minha irmã e o senhor João percebem muito, claro. Serão sempre uma grande ajuda. Embora ela, minha irmã, tenha dois filhos pequenos para cuidar. O marido, ainda muito novo, morreu quando a rapariga tinha apenas quatro anos de idade. Mas garanto-lhe que se irá sentir bem.
- Espero que sim.
- A advogada fitou-o atentamente: - E tem a certeza de que será capaz? Que experiência é a sua? Saul exibiu a referência, que ela leu várias vezes.
Ao devolver-lha, a doutora disse, e o belo sobrolho franzia-se-lhe, denotando a preocupação: - Não se pode dizer que a sua experiência seja grande... e logo exclamou, francamente, num tom de confidência: - O caso é que, Dr. Saul, nos vemos num dilema. Meu pai, o avô dos pequenos, contratara um tratador de meia-idade, pessoa competente, óptimo em todos os aspectos. Já tinha a passagem marcada. Iria com uns vizinhos, que iriam fazer o favor de o levar a casa da minha irmã. Meu pai, muito descansado, foi para o Algarve ver meu irmão. Eu e minha irmã mais velha partimos para Coimbra, daqui a dois dias. Não sei se está a ver o nosso movimento.
- Sim! - E Saul, que não via grande coisa, arranjou um olhar de clara compreensão. - E onde está o outro tratador?
- Está doente. Partiu um dos braços.
Saul ficou tão espantado, que a doutora julgou que o chocara proferindo um termo rude. E corrigia-se: - Sim... teve uma queda e feriu um braço com alguma gravidade. Foi no autocarro.
- Então... - e Saul sentia-se desfalecer - parece-me que, quando ele se curar, via para o Alentejo. Eu iria só durante a ausência dele.
- Nada disso! Não há certeza de que ele fique com o braço em bom estado, e todos achamos que, para exercer as funções para que fora contratado, precisava de ficar devidamente curado.
Se as referências de Saul eram magras, em contrapartida os braços eram admiráveis; e apressou-se a responder: - Os meus são bons, felizmente.
Ela olhou-o num relance perturbado, e exclamou: - Excelente!
Por qualquer motivo, esta conversa de braços colocara-os num novo pé. Desaparecera o constrangimento. Os nervos de Saul relaxaram-se, e ele sorriu à Advogada, mostrando-lhe os dentes brancos, muito iguais.
«Safa», safa, pensou a doutora, «que é lindíssimo!» E, num tom de entendimento, disse: - O pior é que tem de partir dentro de poucos dias...
- Por mim posso partir a todo o momento.
- Quem me dera que o meu pai cá estivesse, para ser ele a decidir! É realmente muito difícil - mas, enquanto falava, bem sabia que lhe agradava a ausência do pai. Tinha a certeza que ele não acharia este encantador rapaz a pessoa indicada para tratador dos animais da herdade. Mas aos próprios animais ele atrairia. E, a irmã, por seu lado, apreciaria a delicadeza dele, a sua distinção. Decidiu-se então a contratá-lo. Era naturalmente inadvertida, e a ideia de ter de procurar mais aborrecia-a. Começou, pois, a falar do ordenado, do tipo de animais, que eram muito diversos, embora alguns perigosos, e, agora, um bocado à deriva. Sem que ele o tivesse declarado expressamente, Saul percebeu que o assunto estava resolvido. O rosto dela estava iluminado pelo alívio que lhe ia no espírito. A doutora Mariana dizia:
- Estou certa de que gostará da Herdade dos Couceiros. É o nome da nossa casa. Minha mãe, oriunda de uma família muito rica, herdou a herdade, uma área com dezenas de quilómetros quadrados de terra, na sua grande maioria improdutiva, mas, com o andar dos anos, transformou numa terra agradável e das mais produtivas de toda a Região. Todos nascemos lá. Eu sou o segundo de quatro filhos que os meus pais tiveram. Três raparigas e um rapaz. Todos estudámos em colégios particulares. Eu, minha irmã mais velha e meu irmão formámo-nos e abandonámos a Região. Minha irmã mais nova, quando saiu do Colégio ficou com o meu pai à frente da Herdade. Casou, mas o marido morreu na guerra do Ultramar. Mais concretamente na Guiné. Tem dois filhos lindíssimos, mas também, muito trabalho.
Havia na voz dela, ao proferir a última frase, uma vaidade que impressionou Saul.
- Como vê, doutor Saul, trabalho não lhe vai faltar, mas bom ambiente, também não.
Falarem-se tão agradavelmente, ser de tal modo posto à vontade - que conforto para Saul, depois de tantas entrevistas que suportara! Era esta a atmosfera do renascer, sentia, pelo qual ansiava. Mal ouvia o que ela dizia...
- Procurámos, doutor Saul, conservar na Herdade os hábitos antigos, e manter-nos livres da estreiteza e modernices actuais. Os nossos vizinhos são simpáticos. Eu estou a falar como se vivesse na Herdade, quando, na verdade, eu, e minha irmã mais velha vivemos em Lisboa, meu irmão no Algarve. Mas passámos lá grandes temporadas; e espero, na próxima, encontrá-lo feliz, nos melhores termos com a minha irmã e tudo que os rodeie.
Não era possível que uma entrevista daquele género se passasse mais agradavelmente. Se a senhora da Herdade fosse, pelo menos, metade da simpatia que esta Dr.ª Mariana era, Saul sentir-se-ia mais feliz do que o máximo que julgava possível. Ao abandonar a entrevista, sentiu-se arrependido de ter deixado ser tratado por Dr. Contudo, tinha de deixar esse esclarecimento para outra oportunidade. Agora sentia que atmosfera transbordava de sons alegres, os carros rodavam com um ressoa rmais vivo, ouvia-se ao longe um comício político e, perto, a companhia sonante de um megafone fazendo propaganda partidária. Ao Saul parecia que os transeuntes andavam mais ligeiros, com expressões mais abertas. Por ora, sentia-se excitado demais para pensar com clareza. Revivia a entrevista com a Dr.ª Mariana, revendo-lhe as belas feições femininas e o sorriso que incutia segurança, ouvindo-lhe a voz bem esclarecida; logo a seguir, o espírito voava-lhe para aquela casa distante onde iria viver, e via a outra edição da doutora, mais recente, dando as mãos a duas irrequietas crianças, e em volta da casa os campos recheados de trigo e girassol, onde touros, os cavalos e as ovelhas rugiam à vontade, embora nunca tão perto que ferissem alguém
Quando, em fim, parou em frente da casa de tipo Solar, olhou-a com sentimento de estranheza. A casa já se afastava. E Saul era como a cegonha, voando de asas abertas numa torrente branda, para longe dos perigos e terrores.
Saul estava feliz por ter acordado cedo. Tinha tempo para manter-se acordado e alinhar o raciocínio, que lhe parecia como que um bugalho por tal forma oco que não voltaria a reconstruir o primitivo conteúdo. O tema daquele conteúdo havia sido a sua vida em Lamego, na companhia daquela que fora a sua brilhante ainda que inconsequente mãe, uma professora que passava a vida a conflituar com os alunos, quer por se preocuparem muito com as aulas, quer muito pouco. Só com eficiência e ponderação era capaz de aceitar alguma coisa. O Saul confundia-a com a sua alegria ou profunda tristeza. O pai morrera quando ele era criança, e não houvera, pois, na vida de Saul, outra influência que tivesse contrariado tais reveses. Acabara por ter um ar assustado, quando os olhos não assumiam uma expressão imaginosa. Os olhos eram verdes, e o cabelo tão forte que se mantinha fixo durante todo o dia teimosamente, embora tivesse um agradável e queda natural. A mãe fora sempre admiradora da beleza dele, a ponto de considerar detestável só a ideia de Saul ter de abandoná-la para ganhar a vida. Particularmente, havia muito de orgulho pessoal nessa atitude. Nem ela nem Saul tinham tido noção clara do seu definhamento físico, até que já era tarde para salvá-la. E eis que morrera.
Descansando agora numa outra cama, metido entre lençóis, Saul rodou a cabeça no travesseiro, sempre com a lembrança perturbadora daquelas terríveis últimas semanas na companhia da mãe. O dinheiro da reforma dela mantivera-os durante a doença, nada mais. Saul recordava-se de como ela utilizava o dinheiro. Ao fim, quase que o gastava apenas em tabaco e bebida. Estes acontecimentos apareciam-lhe para serem lembrados, saltavam-lhe à memória; Saul porém não queria recordá-los. E que, agora, nesta manhã de Verão, necessitava de domínio, ter segurança para recomeçar uma nova vida, que lhe surgia como um Mundo desconhecido sobre o qual, sem quaisquer outros recursos e sem conhecimentos prévios, teria de enfrentar.
Saul desejara ser Veterinário, mas ter-se-ia dedicado a qualquer outro meio de ganhar a vida, pudesse ter ele aprendido outra coisa; mas, para um homem de vinte e cinco anos, na década de setenta do século vinte, havia poucas hipóteses. E o único trabalho a que se sentia com alguma capacidade, tendo em mente o desconhecimento e a falta de experiência, era tratar de animais. O facto de lhe faltar conhecimentos para lidar com animais não o preocupava. Supunha-os bravos, selvagens, a quem encheria de calmantes extraídos de livros de estudo e visitas a jardins zoológicos. Havia de pô-los bem domesticados e fazer deles bons animais. O importante havia sido arranjar trabalho. Garantido este, pôr-se-ia à altura. O problema era arranjar trabalho ou morreria à fome. Na miséria.
Tentara em várias fazendas e cooperativas agrícolas, mas as tentativas não haviam dado qualquer resultado. Não tinha o aspecto, os modos, a voz, que o tornassem desejável para tratador de animais. Era encantador, alto, elegante e bonito, de pele morena, mas tão delicada que parecia nunca ter sido roçada por ventos ásperos ou queimada pelo calor africano. Mas o pior de tudo era o sorriso. Iluminava-lhe o rosto da mais extraordinária maneira, e a boca, que tivera um recorte pensativo, quase melancólico, tornava-se atraente, viva estimulante. Parecia uma criatura perigosa dentro de uma casa onde houvesse uma filha já mulher até uma esposa.
Se Saul ao menos tivesse consciência de tal, disfarçaria o sorriso, substituindo-o por outro mais adequado, mas nunca ninguém lhe chamara à atenção, e, antes de terminada a entrevista, já Saul o exibira... e perdera a oportunidade. Não tinha uma daquelas caras em que os donos das grandes quintas ou herdades de então procuravam num tratador de animais ou Veterinário.
Por outro lado, a falta de currículo profissional fora uma desvantagem quase tão grande como o demasiado encanto. A única referência que tinha era a do director de um Colégio para quem sua mãe às vezes leccionara; e baseando-se no facto de Saul ter passado um mês em sua casa, fazendo companhia ao seu querido filho, durante uma doença da mãe do rapaz. Esse homem havia sido extremamente atencioso, quando Saul lhe pedira uma referência, fizera o possível por engrandecer a breve estadia, a eficiência o jeito admirável que Saul tinha para lidar com animais. Pois tivera apertado duas talas numa das pernas do seu pastor alemão, quando na verdade, o bicho não tinha nenhuma perna partida, somente tivera sido mordido por uma abelha. A cura foi quase imediata.
Ao relê-la, Saul não a achara exagerada. «Podia ser melhor.» Havia na sua maneira de ser disponibilidade que o fazia sentir-se à altura do que ali estava escrito. Não achava aquilo mais que a verdade. E só após vários insucessos a coragem principiara a faltar-lhe, e abria o "Comércio do Porto" e procurava os anúncios cada vez com mais dúvidas.
Agora, com a frescura do lençol na cara, contemplava os ramos de jasmim no papel de parede, ligados por grinaldas de fitas turquesa, recordando aquela manhã em Lamego, havia menos de um mês, em que fora contratado para esta casa no Alentejo. A atmosfera havia sido soalheira. O som dos seareiros, dos porcos e dos touros bravos que marcava o ritmo da vida alentejana parecia ter um colorido novo. Nos carreiros rodavam com ruído carroças puxadas por burros velhos coçados, ovelhas, cães e touros bem tratados e alimentados, que animavam os campos, lhes davam um ar de repousada e próspera actividade. A própria brisa matinal, entrando pela janela aberta, trazia vida nova; e um arrepio de esperança percorreu os nervos de Saul enquanto examinava os anúncios.
Quase logo um anúncio lhe passou aos olhos e os prendeu. E lera:
«Admite-se Veterinário competente para trabalho no Sul de Portugal. Ter a seu cargo animais criados para revenda, exportação e touradas. Todas as despesas, incluindo viagens, serão da responsabilidade da Empresa. Só deve apresentar-se pessoa com vontade segura. Os interessados deverão contactar com Dr.ª Mariana Couceiro, Rua Augusta, Lisboa.»
O coração de Saul começou a bater aceleradamente. Deixou cair ao chão o jornal e levantou-se. Uma sede de aventura o sacudiu. Nunca lhe aparecera na vida uma oportunidade. Embora tivesse sido oficial no exército colonial, mal tivera alguma vez consciência de que poderia ansiar por aventuras. Vivera envolto no mundo imaginoso de uma criança sonhadora, até muito depois de vivida a infância e cumprido o serviço militar. Agora que as névoas haviam sido varridas pela morte da mãe e a gélida exigência de ganhar o seu pão surgira, pela primeira vez ficara Saul a conhecer-se a si próprio.
- Atravessar o País! - disse em voz alta! - Viver num ambiente de touradas! Apre, que mais me poderá acontecer!
Apanhou o "Comércio do Porto" e tornou a ler o anúncio. Em imaginação, sentia o pulsar dos trilhos dos caminhos-de-ferro debaixo do comboio, via-se dentro de um de longo curso, num banco de madeira, enquanto o revisor lhe perguntava pelo bilhete. Ultimamente, tivera de ser tão poupado que a ideia de uns camarões e umas cervejas lhe dominava cada vez mais o espírito. Era novo, saudável e bem constituído. Nada de gorduras.
A segunda leitura do anúncio mais lhe despertou a vontade de conseguir aquele lugar, se possível fosse. A verdade é que este brilhava-lhe diante dos olhos como que em resposta a uma súplica. Se não conseguia convencer esta senhora doutora Mariana Couceiro a empregá-lo, eram uma vez as suas esperanças de trabalhar com animais ou ser Veterinário. É quase certo que se veria obrigado a aceitar qualquer trabalho que lhe oferecessem, por desagradável que fosse.
Tão pouca noção tinha do que devia ser o aspecto de um tratador ou Veterinário que se esmerou, se tornou atraente para a entrevista. Pegou nos melhores sapatos, os de luva pretos, e engraxou-os. Vestiu o seu melhor fato azul-marinho, quase preto. A mãe pedira-lhe de que tomasse luto por ela, mas, já por hábito, andava sempre vestido de escuro. A gravata, com um grande nó, era enfeitada com um alfinete de ouro que a mãe lhe oferecera quando ele entrou para a Universidade. Achou-se esplêndido e passou o pente pelo cabelo. Ficou satisfeito com o seu próprio aspecto. Desceu as escadas num passo ligeiro, que não tinha havia muito tempo.
Ele e a mãe moravam naquela casa antiga e de tipo solar, nas margens do rio Balsemão. Estavam instalados confortavelmente. Saul tinha especial talento para viver em qualquer casa. Habituara-se durante a guerra. Quando chegou à rua e sentiu a mesa-de-cabeceira do seu quarto, se lembrou de como ali ficara só, olhando o Céu, na noite em que a mãe morrera, interrogou-se sobre quais seriam os seus pensamentos, quando de novo lá estivesse. O coração recomeçou a bater acelerado. Temis ser capaz de falar com calma e eficiência em frente da senhora doutora Couceiro. Figurava-a uma mulher fria e carrancuda, capaz de lhe fazer uma entrevista que o levasse ao desespero.
Entrou num autocarro apinhado de pessoas. As ruas exibiam pinturas recentes dedicadas à Revolução dos Cravos. Floristas apregoavam a venda de Cravos em todas as esquinas. Se por entre a multidão, se contavam criaturas esfarrapadas e decaídas, Sal não as via. Os olhos iam-lhe só para as bandeiras dos partidos políticos alegadamente desfraldadas, de cores vemelhas mostrando ostentosamente, as imagens de Lenine e Mao Tsé-Tung, para os operários exibindo o V de Vitória com os dedos das mãos, para as crianças que as mães levavam para o Infantário. Mas tudo era com figidia névoa, ao aproximar-se do encontro que seria o começo ou fim das suas esperanças de vir a ser tratador de animais ou Veterinário.
Na Rua Augusta, disseram-lhe que a senhora doutora saíra, mas não demorava e se avistaria com ele no escritório. Saul andou para trás e para diante na sala, sentindo-se muito pequeno, que era o que lhe acontecia quando nervoso esperava por uma pessoa estranha. Talvez fosse melhor sentar à entrada da doutora Couceiro, sem contudo se endireitar completamente. Compôs-se, arranjou a gravata e cruzou as mãos no regaço. Observou os quadros, escutou o movimento do Escritório, e tentou lembrar-se de alguma peripécias em África, para acalmar-se, mas as peripécias tinham fugido todas. A dúvida e o desalento tinham-se apoderado dele. Começou a tremer tanto, que bem via tremerem-lhe as pernas dentro das calças. Era a expectativa em pessoa. «Se ao menos ela chegasse e acabasse com tudo por uma vez!» Estava a vê-la: uma mulher alta e magra, com ar de poucos amigos. Ao ouvir-lhe os passos - pois que, instintivamente, sabia que era a senhora doutora Mariana Couceiro - por pouco não abandonou o Escritório e voltou para Lamego.
E como ela era diferente do que ele esperava! Alta! Nada gorda! Bem pintada! Bonita compleição física! Doces olhos azuis! Sorriso acolhedor! Trazia na mão direita uma pasta com documentos, e vestia com elegância um vestido vermelho, que era a cor da época, e que uma linda rosa vermelha na mão esquerda mais elegante o tornava. «Deve ter perto de trinta e cinco anos», pensou ele deslumbrado e perturbado.- Desculpe-me, se esperou muito tempo. Eu tinha assuntos a tratar. Se bem entendo, é...
Hesitou, suspensa na figura encantadora de Saul. «Evidentemente que este jovem, tão atraente como qualquer outro transeunte das grandes capitais do mundo, não vinha propor-se para tratador de animais. Era Veterinário, no mínimo!», interiorizou ela.
- Sim - respondeu Saul, com voz tremente. - Eu estou na disposição... Eu preciso muito... Eu chamo-me Saul Sandman.
- Ah, sim, senhor doutor Sandman. Não quer fazer o favor de sentar-se? - E hesitou mais uma vez, até que se sentou numa cadeira estofada de pele preta, mesmo ao lado dela. «Tinha uma presença que inspirava confiança. Era a delicadeza em pessoa», pensou Saul.
- Julgo que reparou que se lhe exige que, no caso de ser aceite, vá para o Alentejo. Saul não sabia, mas fingiu saber.
- Sim, sim. Eu...bem, eu gosto muito de ir para o Alentejo.
- E posso saber por que motivo?
- Quero sair de Lamego. Minha mãe morreu há semanas. Não tenho ninguém! Gostava de ir para outra zona do País.
- E sente-se capaz de tratar e manter em boa saúde milhares de animais de uma das maiores herdades daquela Região, aliás, do País?
- Oh! Sinto que sou! Adoro lidar com animais.
- Bom! Mas são animais muito diversos. Desde touros bravos, ovelhas, porcos de pata preta e cavalos Lusitanos. Minha irmã e o senhor João percebem muito, claro. Serão sempre uma grande ajuda. Embora ela, minha irmã, tenha dois filhos pequenos para cuidar. O marido, ainda muito novo, morreu quando a rapariga tinha apenas quatro anos de idade. Mas garanto-lhe que se irá sentir bem.
- Espero que sim.
- A advogada fitou-o atentamente: - E tem a certeza de que será capaz? Que experiência é a sua? Saul exibiu a referência, que ela leu várias vezes.
Ao devolver-lha, a doutora disse, e o belo sobrolho franzia-se-lhe, denotando a preocupação: - Não se pode dizer que a sua experiência seja grande... e logo exclamou, francamente, num tom de confidência: - O caso é que, Dr. Saul, nos vemos num dilema. Meu pai, o avô dos pequenos, contratara um tratador de meia-idade, pessoa competente, óptimo em todos os aspectos. Já tinha a passagem marcada. Iria com uns vizinhos, que iriam fazer o favor de o levar a casa da minha irmã. Meu pai, muito descansado, foi para o Algarve ver meu irmão. Eu e minha irmã mais velha partimos para Coimbra, daqui a dois dias. Não sei se está a ver o nosso movimento.
- Sim! - E Saul, que não via grande coisa, arranjou um olhar de clara compreensão. - E onde está o outro tratador?
- Está doente. Partiu um dos braços.
Saul ficou tão espantado, que a doutora julgou que o chocara proferindo um termo rude. E corrigia-se: - Sim... teve uma queda e feriu um braço com alguma gravidade. Foi no autocarro.
- Então... - e Saul sentia-se desfalecer - parece-me que, quando ele se curar, via para o Alentejo. Eu iria só durante a ausência dele.
- Nada disso! Não há certeza de que ele fique com o braço em bom estado, e todos achamos que, para exercer as funções para que fora contratado, precisava de ficar devidamente curado.
Se as referências de Saul eram magras, em contrapartida os braços eram admiráveis; e apressou-se a responder: - Os meus são bons, felizmente.
Ela olhou-o num relance perturbado, e exclamou: - Excelente!
Por qualquer motivo, esta conversa de braços colocara-os num novo pé. Desaparecera o constrangimento. Os nervos de Saul relaxaram-se, e ele sorriu à Advogada, mostrando-lhe os dentes brancos, muito iguais.
«Safa», safa, pensou a doutora, «que é lindíssimo!» E, num tom de entendimento, disse: - O pior é que tem de partir dentro de poucos dias...
- Por mim posso partir a todo o momento.
- Quem me dera que o meu pai cá estivesse, para ser ele a decidir! É realmente muito difícil - mas, enquanto falava, bem sabia que lhe agradava a ausência do pai. Tinha a certeza que ele não acharia este encantador rapaz a pessoa indicada para tratador dos animais da herdade. Mas aos próprios animais ele atrairia. E, a irmã, por seu lado, apreciaria a delicadeza dele, a sua distinção. Decidiu-se então a contratá-lo. Era naturalmente inadvertida, e a ideia de ter de procurar mais aborrecia-a. Começou, pois, a falar do ordenado, do tipo de animais, que eram muito diversos, embora alguns perigosos, e, agora, um bocado à deriva. Sem que ele o tivesse declarado expressamente, Saul percebeu que o assunto estava resolvido. O rosto dela estava iluminado pelo alívio que lhe ia no espírito. A doutora Mariana dizia:
- Estou certa de que gostará da Herdade dos Couceiros. É o nome da nossa casa. Minha mãe, oriunda de uma família muito rica, herdou a herdade, uma área com dezenas de quilómetros quadrados de terra, na sua grande maioria improdutiva, mas, com o andar dos anos, transformou numa terra agradável e das mais produtivas de toda a Região. Todos nascemos lá. Eu sou o segundo de quatro filhos que os meus pais tiveram. Três raparigas e um rapaz. Todos estudámos em colégios particulares. Eu, minha irmã mais velha e meu irmão formámo-nos e abandonámos a Região. Minha irmã mais nova, quando saiu do Colégio ficou com o meu pai à frente da Herdade. Casou, mas o marido morreu na guerra do Ultramar. Mais concretamente na Guiné. Tem dois filhos lindíssimos, mas também, muito trabalho.
Havia na voz dela, ao proferir a última frase, uma vaidade que impressionou Saul.
- Como vê, doutor Saul, trabalho não lhe vai faltar, mas bom ambiente, também não.
Falarem-se tão agradavelmente, ser de tal modo posto à vontade - que conforto para Saul, depois de tantas entrevistas que suportara! Era esta a atmosfera do renascer, sentia, pelo qual ansiava. Mal ouvia o que ela dizia...
- Procurámos, doutor Saul, conservar na Herdade os hábitos antigos, e manter-nos livres da estreiteza e modernices actuais. Os nossos vizinhos são simpáticos. Eu estou a falar como se vivesse na Herdade, quando, na verdade, eu, e minha irmã mais velha vivemos em Lisboa, meu irmão no Algarve. Mas passámos lá grandes temporadas; e espero, na próxima, encontrá-lo feliz, nos melhores termos com a minha irmã e tudo que os rodeie.
Não era possível que uma entrevista daquele género se passasse mais agradavelmente. Se a senhora da Herdade fosse, pelo menos, metade da simpatia que esta Dr.ª Mariana era, Saul sentir-se-ia mais feliz do que o máximo que julgava possível. Ao abandonar a entrevista, sentiu-se arrependido de ter deixado ser tratado por Dr. Contudo, tinha de deixar esse esclarecimento para outra oportunidade. Agora sentia que atmosfera transbordava de sons alegres, os carros rodavam com um ressoa rmais vivo, ouvia-se ao longe um comício político e, perto, a companhia sonante de um megafone fazendo propaganda partidária. Ao Saul parecia que os transeuntes andavam mais ligeiros, com expressões mais abertas. Por ora, sentia-se excitado demais para pensar com clareza. Revivia a entrevista com a Dr.ª Mariana, revendo-lhe as belas feições femininas e o sorriso que incutia segurança, ouvindo-lhe a voz bem esclarecida; logo a seguir, o espírito voava-lhe para aquela casa distante onde iria viver, e via a outra edição da doutora, mais recente, dando as mãos a duas irrequietas crianças, e em volta da casa os campos recheados de trigo e girassol, onde touros, os cavalos e as ovelhas rugiam à vontade, embora nunca tão perto que ferissem alguém
Quando, em fim, parou em frente da casa de tipo Solar, olhou-a com sentimento de estranheza. A casa já se afastava. E Saul era como a cegonha, voando de asas abertas numa torrente branda, para longe dos perigos e terrores.
segunda-feira, março 21, 2011
MAIS UM DIA NESTE DIA DA POESIA!
Um dia,
Anoitecia,
Já mal se via,
Algo aparecia.
Da escuridão,
Quem me diria?
- Sou tua amante, tua paixão!
Sou alegria.
Correndo, da solidão,
Esfuziante, coisa que há muito não sentia,
Em pouco tempo, com prontidão,
Veio-me à mente a poesia.
Por vezes usamos a poesia, não para divagar com realidades, mas sim para as mostrar. Usamos as variantes mais belas da nossa mente, a bondade, a saudade, o sentimento e dor por quem sofre, como que a pala de um vulgar boné para esconder as outras: as subjectivas e irreais. Um dia, em plena guerra, ao ver crianças maltratadas, olhei nos olhos dos malfeitores e disse-lhes: «Quem não deixar crescer as crianças, será sempre pequeno.» Pode parecer estranho, mas dos poucos que ainda conheço, a maioria já morreu, nenhum cresceu, os que ainda vão estando por aqui, continuam todos muito pequenos.
David Santos
terça-feira, março 08, 2011
quarta-feira, março 02, 2011
quarta-feira, fevereiro 23, 2011
PADRINHOS, E AGORA?
quarta-feira, janeiro 19, 2011
TROCA DE NOME!
Eu já tive um patrão
que me chamou de ladrão
da fortuna que não vejo
nem no tecto nem no chão
um dia fui procurá-la
a casa desse patrão
mas ele não estava em casa
que por roubar está na prisão
David Santos - IN POESIS 21
que me chamou de ladrão
da fortuna que não vejo
nem no tecto nem no chão
um dia fui procurá-la
a casa desse patrão
mas ele não estava em casa
que por roubar está na prisão
David Santos - IN POESIS 21
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